Serra da Estrela

MIGUEL TORGA evoca a Banda de Torrozelo

17-01-2012 21:25

Essa evocação acontece no livro "Novos Contos da Montanha" na página 82.

 

A Festa

Tinha cada um o seu sonho para a festa de Santa Eufémia. O Nobre, era deslindar umas contas velhas com o Marcolino; a mulher, era pagar a promessa que fizera por causa do ferrujão dos bois; a filha, era passar a noite no arraial, a dançar a cana-verde nos braços do namorado. Por mais duro que fosse o serviço - roçar estrume, saibrar ou arrancar batatas,bastava a ideia desse dia longínquo para ocansaço se evaporar. O Nobre via-se limpo do nome de covardola com que o Marcolino o mimoscara; a Lúcia imaginava-se a dar voltas à capela, acarinhada pela bênção protectora da santa; a Otília fervia já no calor dum contacto permitido e amado, ao som da música de Torrozelo.

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CONTRIBUTO de António Martins (Tó Mineiro)

UM POUCO DE MIGUEL TORGA

Nasceu em S. Martinho de Anta, concelho de Sabrosa, em 12.8.1907 e faleceu em 17.1 1995, sendo sepultado na aldeia natal.  De seu nome completo Adolfo Correia da Rocha, adoptou o pseudónimo de Miguel Torga porque "eu sou quem sou.  Torga é uma planta transmontana, urze campestre, cor de vinho, com as raízes muito agarradas e duras, metidas entre as rochas.  Assim como eu sou duro e tenho raizes em rochas duras, rígidas, Miguel Torga é um nome ibérico, característico da nossa península"... Feita a 4ª classe com distinção, o pai disse-lhe: "tens de escolher ... aqui não te quero.  Por isso resolve: ou o seminário de Lamego ou Brasil".  Daí a pouco lá ia o rapaz rumo a Lamego: "ía na frente, de fato preto, montado, a segurar o baú de roupa que levava diante de mim.  Meu pai e minha mãe vinham atrás, a pé, ele com os ferros da cama às costas e ela de colchão e cobertores à cabeça", contará mais tarde em A Criação do Mundo.  Aí esteve um ano.  Chegou a ajudar à missa, durante as férias, com grande enlevo para a mãe.  Mas a decisão era outra.  O Brasil era a única saída.  Partiu em 1920.  "Ficou em casa de uma tia que lhe impôs como obrigação, em todos os dias carregar o moinho, mungir as vacas que davam leite para a casa, tratar dos porcos, prender as crias das vacas, curar bicheiros e procurar pelos matagais as porcas e as reses paridas".  Um ano depois estava de regresso a Portugal.  O tio prontificara-se a fazer dele um médico, custeando-lhe os estudos, em Coimbra.  Aos 24 anos estava formado.  Especializou-se em Otorrinolaringologia.  Começou por exercer clínica geral na sua aldeia.  A experiência foi negativa.  Instalou-se em Leiria, de que gostava.  Mas por causa das tipografias, optou por voltar a Coimbra.  Depois de uma vida amorosa repartida, pelos sítios, por onde passava, acabou por casar pelo civil com a Prof. universitária (de Coimbra), a belga André Cabrée: "vou tentar ser bom marido, cumpridor.  Mas quero que saibas, enquanto é tempo, que em todas as circunstâncias te troco por um verso" (confessará em A Criação do Mundo, V).  Entre a passagem pelo seminário e a ida para o Brasil ainda foi caixeiro num estabelecimento comercial, no Porto.  Foi sempre um homem, socialmente difícil.  Pouco comunicativo, falando com mais convicção do que razão.  "Uma das facetas menos atraentes do carácter de M.T. é a sua forretice.  Chega a comprar livros com exemplares dos seus.  De Leiria a Coimbra viajava sempre em 3ª classe.  Foi ao estrangeiro, por diversas vezes, percorrendo boa parte da Europa, aproveitando sempre boleia de dois amigos.  Quase não oferece livros a ninguém, recusa dedicatórias e autógrafos, nunca confiou o seus livros a nenhuma editora, preferindo sempre "edições do autor", com pequena tiragem e no papel mais barato possível." (Antônio Freire, in Lendo M.T.). Na gráfica onde fazia os seus livros, ao seu amigo Pe. Valentim que lhe ajudava nas tarefas tipográficas fazia "um preço cristão".  Na clínica usava sempre o mesmo ritual: uma bata branca.  Só comprou televisão após o 25 de Abril para ouvir as notícias.  Não tinha telefone em casa para não lhe interromperem o trabalho (José C. Vasconcelos, in JL, 6-12 de Junho de 1989). O material que "manda para a tipografia leva vários remendos colados uns sobre os outros.  Chegam a ter umas sete e oito colagens.  Por causa de uma vírgula é capaz de passar uma noite sem dormir". Dedicava-se à caça, algumas vezes, nos montes da sua região.  Quando ali trabalhava, chegava da caça e dava consulta com a roupa com sangue que trazia dos montes.  Era a mãe que lhe chamava a atenção.  Com a entrada para a Universidade, em 1928, deu início à sua obra, publicando dois livros: Ansiedade (que logo esgotou).  Somente voltou a ser mencionado na Antologia Poética (1981).Rampa (1930) teve um destino idêntico.  Os seus adversários da época chegavam a acrescentar-lhe um T, antes do título.  Ambos esses livros saíram com nome próprio.  Em 1936 aparece, pela primeira vez com o seu pseudónimo em O outro livro de Job, de que faz apenas edições de 300 exemplares.  Desde aí até fins de 1994 escreveu uma obra vasta e marcante, em poesia, prosa, teatro.  Alguns dos seus livros, como Bichos tiveram já mais de vinte edições.  Deixou 16 volumes dos seus Diários.  Muitas obras suas foram traduzidos nas principais línguas de todo o mundo, incluindo em chinês.  Foi muitas vezes apontado como sério candidato ao Prémio Nobel da Literatura. Ganhou o prémio Luís de Camões, no valor de 10 mil contos (1989).  Chegou a ser preso pela PIDE.  Algumas vezes teve vontade de sair do país: "Mas abandonar a Pátria com um saco às costas?  Para poder partir teria de meter no bornal o Marão, o Douro, o Mondego, a luz de Coimbra, a biblioteca e as vogais da língua.  Sou um prisioneiro irremediável numa penitenciária de valores tão entranhados na minha fisiologia que, longe deles, seria um cadáver a respirar".  Queriam fazer dele um socialista, quando se deu o 25 de Abril de 1974.  Nunca se filiou em partido algum: o meu partido é o mapa de Portugal.  Sobre a descolonização escreveria: fomos descobrir o mundo em caravelas e regressámos dele em traineiras. Afanfarronice de uns, a incapacidade de outros e a irresponsabilidade de todos deu este resultado: o fim sem a grandeza de uma grande aventura.  Metade de Portugal a ser o remorso da outra metade.  Em 1996 foi fundado o Círculo Cult ral Miguel Torga, com sede em S. Martinho de Ama.

 

Novos Contos da Montanha

Publicada em 1944, Novos Contos da Montanha é uma coletânea de 22 contos, da autoria do consagrado escritor Miguel Torga.Contos germinados e medrados na Montanha, de acordo com palavras do próprio autor, dirigidas ao leitor, no prefácio à segunda edição "Escrevo-te da Montanha, do sítio onde medraram as raízes deste livro", estes textos narrativos, numa linha de continuidade da obra Contos da Montanha, percecionam histórias acontecidas num espaço e vividas por gentes que enformam a memória da infância e da adolescência de Miguel Torga. Este espaço, definido pelo autor, como o "Reino Maravilhoso", povoado por uma existência materialmente pobre, mas eticamente rica, foi, simultaneamente, o seu berço e a sua escola, comprometendo-se este, em nome da "consciência coletiva" do leitor, enquanto entidade responsável socialmente, a denunciar aquele quotidiano de fome, ignorância e desespero.
Testemunho da vivência sofrida dos seus "irmãos" transmontanos, estes contos ilustram personagens, de tipo torguiano que reconhecemos como "autênticas" e inteiras e que fazendo parte do Portugal de hoje, constituem uma "montra de heróis montanheses, revoltadamente livres e trágicos na sua solidão". Verdadeiras, estas são personagens detentoras de vícios e de virtudes, atuando de acordo com a circunstancialidade cultural que se vem projetando ao longo dos tempos.
Assim, o conto O Alma Grande apresenta-nos uma personagem que nos remete para a morte e para a forma como esta gente serrana convive com ela. Na verdade, vestindo a pele de Parca, o Alma Grande aparece a pedido dos familiares dos doentes em fase terminal para lhes cortar o cordão umbilical que os liga precariamente à vida, como forma de lhes aliviar o sofrimento. Entendido assim pelos adultos, esta personagem vai ter que se debater com o esturtor de Isaac que, agarrado à vida, consegue escapar às tenazes e ao peso do joelho da "morte". Incapaz de agir perante o filho do moribundo, Abel, que entrara no quarto, levado pela curiosidade e vontade de compreender aquela presença, o Alma Grande não conseguiu concluir o seu trabalho. 
O conto O Leproso apresentam-nos um conjunto de personagens de tipo kafkiano, contextualizadas num tempo e num espaço que é, metaforicamente, o das trevas. Narrando uma ação situada em Loivos, no Douro, este conto centra-se no quotidiano de um conjunto de trabalhadores, "camaradas de suor" que " eram (?) amigos, daquela amizade possível entre gente rude e sacrificada, sem licença para aventuras intensas do coração e do entendimento.". Assolados pelo medo provocado pela desconfiança de que Julião, camarada de trabalho, contraíra a lepra, votaram-no ao ostracismo. Sentindo-se completamente abandonado pelos amigos, num momento em que mais precisava deles, e após várias tentativas para combater a doença, Julião prepara a vingança. Vendendo o azeite onde se banhou (para se curar) ao fornecedor da aldeia, espalha o pânico na população. Esta atitude desesperada desencadeia uma resposta que, crescendo como uma bola de neve, se torna impossível de controlar, levando à trágica morte pelo fogo de Julião.
Como estas, todas as personagens dos contos desta coletânea se constituem numa tradição cultural telúrica e se movimentam no espaço íntimo da memória do autor.
Assumindo-se como um escritor cujos textos brotam da terra que lhe deu vida, a sua escrita não é, contudo, localmente circunscrita. Pelo contrário, a sua mensagem e os valores veiculados pelas suas personagens têm uma dimensão muito mais abrangente, capaz de transformar uma realidade localizada numa realidade universal.
Novos Contos da Montanha é uma compilação constituída por 22 contos que têm os seguintes títulos: O Alma Grande,FronteiraO Pastor GabrielRepousoO CaçadorO LeprosoDestinosO LopoO Sésamo,MarianaNatalNévoaRenovoO RegressoA ConfissãoO MilagreO ArtilheiroTeia de AranhaA FestaO MarcosA Caçada e O Senhor.

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